quarta-feira, 9 de setembro de 2009

UM TUTANO CHAMADO JOSE MUCAVELE

Um tutano chamado José Mucavele

Quando falamos de tutano a ideia que logo ressalta é a de “essência, parte mais íntima, e/ou âmago de uma coisa”. Pois, é esta a ideia que me ressalta sempre que falo de José Mucavele.

É para mim este, um dos mais lídimos e resistentes símbolos da nossa música e cultura, a santa ceia espontânea e natural da nossa tradição e dimensão.

Desconheço as dores deste poeta, mas as minhas, as conheço, porque as sinto de forma tão óbvia, tão incisiva, tão resistente, de tal forma que se torna impossível de delas me livrar.

São as dores de não reconhecimento destes homens (como o José), que carregam o âmbar da nossa cultura mas, mesmo assim, ostracizados até de quem tem o dever especial de os suportar.

Uma voz, guitarra e temâtica que lutam contra a surdez da música que se faz hoje. Música sem preocupação de estética, de ritmo, de mansagem, uma música que dá a sensação de bloqueio dos seus fazedores, porque executada da mesma forma e me atreveria a questionar; música?

Só o absurdo pode traduzir a maioria do que se faz hoje em dia como música, mas, esta é outra história.

Impeliu-me a vontade de escrever sobre o José Mucavele, como um pequeno ode aos meus amigos que ainda acreditam no resguardo dos nossos valores e, neste momento, minha mente desatina, porque, se nos demais actores da nossa música sempre tive o cuidado de um tema para os retratar, custa-me escolher um de e para Mucavele.

Custa-me justamente porque analisada em conjunto a música deste, aponta para uma única direcção: como suporte da nossa identidade como povo, nação, mas, se analizada à parte, encontramos fragmentos do concretismo factual do nosso quotidiano, como tribo, etnia, raça, país e continente.

Intrigam-me, com alguma fascínio a mistura, as construções filosóficas de Mucavele, que tem a particularidade de partir da menor premissa para a maior, do campo para a cidade e da cidade para o mundo.

As músicas de José vivem um objecto real: um homem do campo, que acaba personificando o homem africano e a imagem que este projecta para o mundo, e da forma como o mundo o vê e acima de tudo como olha para si mesmo.

Descobri em “Mupfana wa livala” (Pastor), outras verdades que não se circunscrevem naquele círculo restrito familiar como José dá a entender na sua música e clip (bem interpretado pela parelha Gilberto Mendes e Lucrécia Paco), onde o Mupfana (rapaz pastor de gado), é rejeitado e desprezado pelos pais da sua amada, somente porque é do campo.

Redescobri naquela rejeição, a posição do homem africano ante o mundo, que é visto com o mesmo cepticismo, desprezo, rejeição, justamente porque homem do campo (Africa), logo, atrasado, não convicto, lento no pensar, que não transforma, passivo, imediatista, etc.

Esta música é o reivindicar sempre perene de um espaço pelo homem africano e a sua inserção no mundo. É a constante negação de que não precisamos nos transformar, de adequar os nossos hábitos ao ocidente para que sejamos iguais.

O “mupfana wa livala” se perdesse o que o caracteriza, esvaziava toda a sua essência, sua vida, passaria a uma auto flagelação moral, de crise identitária que só abonaria, a quem o quer fragilizar.

Se tivesse que resumir a música e obra de José diria, que constituem uma negação deste estado de coisas, porque o africano, sabe olhar a si com belos olhos, sabe olhar a si com exigência de quem participa num projecto que uma dia há-de se cumprir: de uma ÁFRICA igual a si mesma, uma ÁFRICA que vai quebrar inteiramente o vírus da dependência, porque enquanto isso não acontecer será a mesma situação que o José canta: “hilava va taka, vadla tres pratos kuvi hina mamani hidla hafo prato”(eis os que vem comem três pratos, enquanto que nós mãe, comemos apenas a metade), para bom entendedor.

Está ai a tutanez do José, este embondeiro que resiste a todas intempéries.

Será que resiste?

Amosse Macamo

14 comentários:

Ximbitane disse...

Tutano? Não sei! Eu preferia um osso duro de roer. So assim haveria de rimar com a sua ferrea força em lutar contra todas as intemperies.

Seja como for, José Mucavele, é um icone da cultura moçambicana, disso nao resta a menor duvida

Nkutumula disse...

O kota Mucavel é ímpar e único em tudo que faz. Um verdadeiro embaixador da moçambicanidade musical. Prestem muita atenção para a letra da música “balada para as minhas filhas”. Uma verdadeira lição daquilo que devemos todos procurar ser se quisermos ter uma identidade.

“Djondzane ngopfu”, ou seja, estudem muito (para perceberem os fenómenos à vossa volta). Não basta estudar. É preciso estudar muito, sempre, questionar sempre, procurar saber o significado das coisas... Tudo isso para que a nossa terra e a nossa moçambicanidade nunca sejam alienadas...

O kota Mucavel... Ah, é único, incomparável, insubstituível, respeitável, e todas as outras coisas que lhe possam caracterizar se traduzem numa só frase: exemplo a seguir

amosse macamo disse...

Tutano sim, mas tambem osso duro de roer...as duas servem, penso eu.
um verdadeiro icone, que nao verga nas suas ideias, nunca.

amosse macamo disse...

Nero, odeio esta de andarmos a concordar um com o outro.subscrevo do que dizes do Mucavele, concordo.

Júlio Mutisse disse...

Ha um risco que corremos ao nao estudar o cancioneiro mocambicano e os seus fazedores. No caso do Mucavel poder-se-a tranformar numa lenda no verdadeiro sentido da palavra.

Mucavele eh enorme. Eh preciso percorrer a sua obra para o perceber, do Xigutsa Xa Utomi e o questionamento sobre a sorte de africa passando pela BALADA, ate desaguar nos compassos corre um rio cujas dimensoes pouco conhecem - eu conheco o minimo - cujas margens sao comprimidas pela recusa de reconhecimento que, tambem, se consubstanciaria no no reconhecimento do seu valor e no VALOR da sua obra que nos representa a todos.

Oucam as guitarradas do Ze, parecem de 2/3 pessoas quando sao feitas por 1 so

amosse macamo disse...

Julio, de coo escreves, obrigas-me a mais um post, digo, dois, três, quarto….quando me colocas músicas como Xigutsa xa wutomi, vergo. Vergo-me porque me tinha recusado a falar destas músicas, por todos motivos evocáveis.
Quando me colocas a questão dos compassos (10 compassos ora programados), não fazia sentido que os compassos não avançassem, porque representativas do nosso mosaico historico e cultural, portanto, não são compassos de Zé, mas de Moçambique e moçambicanos. Na verdade, 10 compassos, (10 províncias de Moçambique), seriam estes, o revirar dos nossos valores, uma biblioteca que não se apagaria nunca da nossa memória colectiva, nosso hinário, nossa ode.
Ao Zé, ainda se vai sentenciar como Jesus sentenciava; a César o que é de César e a Deus o que ‘e de Deus.
Voltarei, Júlio, porque Zé é múltiplo, não só nas suas notas, mas também no seu pensamento.
Viva a cultura inalienável.

mãos disse...

"A cULTURA é o Sol que nunca desce" - Samora Machel.

Caro Amosse,
Faz tempo que conheci o trabalho de Mucavele, "temi" afirmar que adorava os seus temas, pois eu não tenho ouvido apurado (risos)...raz
ao pela qual quer boa vontade da minha parte, tenho O cd Compassos I comigo e não empresto a ninguem (egoista nem?)mas sim podemos escutar e em volta dele falar da sua melancolia, sua ritmica e o que o som nos transmite...infelizmente raras são as vezes que isso pode acontecer, pois a ginastica diaria de cada um varia, mas qdo hea esse tempo é para desfrutar...viajo nos temas como Baladas para as minhas filhos e me reencontro no NKMA WAKU AFRica...um tema que não perde actualidade, realidade do continente...e pelas andassas, surge no email o tema SOU O QUE SOU...fantastico mano...Mucavel grita se ferir os timpanos,a sua moçambicanidade e africanidade...apela o próximo, o mundo a lhe perceber...só ouvindo mano....

"Sou o que sou/Não aceito ser o que tu queres que eu seja/tenho uma cultura deste lado de cá/maneira própria de ser verdadeiro tropical/Sou Moçambicano Bantu do Indico/Não viole minha cultura tenho imagens a preservar/Sou Homem de paz, sou Homem de Amor..."

Mucavel é Mucavel...se calhar seria momento oportuno dos responsaveis pelos festivais de verão da casa pensar em artistas com Mucavel...a beira mar, uma guitarrada nao faz mal...a reedição do Compassos I (capa amarela)pode até favorecer um dos responsaveis do festival...

Faço "Stop" por que está a tocar o tema NEWASSANI (será???), onde Mucavel diz "SWI NADZIYA HALNO KAYA KUNGANI A XIKANDJU...)

Longe de casa com Zé Mucavel...

Um abraço

amosse macamo disse...

Ouri, o posto eh meu, rs rsr rs rs, bom que tenhas vindo aqui meu amigo, bom ainda, saber que te criei saudades de casa e mais, mais uma oportunidade de ouvir(sentir) o Ze...inkama waku Africa unga salindzaku eh de facto um tema sempre actual...madjaha niti ntombi phakamissani muzimbha, mutimula timbilu, mungatxaveni matlharhi i nyko wa ntumbuluko...palavras fortes, muito fortes...eh como dizia ao Muthisse, voces me obrigam a ter que escrever de novo e esta?
..hingani tsike ni phindha nemwassani yeweee....

amosse macamo disse...

ou entao o la hlamalissa utomi la hina va ntima...sabes? obrigaste-me Ouri, a calar-me por uns instantes e deixar os meus sons internos cairem e veja Ze ja nao para na minha cabeca....hei?!

Júlio Mutisse disse...

Ilustres, o Ze eh um homem de muito saber... guarda com ele e nos compassos por editar muito do que nos somos como povo, como nacao.

O Ze, com toda aquela vitalidade ja nao tem a minha idade - eu que tenho a idade de Mocambique, e portanto, nao muito NOVO - urge fazer o click para que ele deite ca para fora todo o seu saber para beneficio da Uly e da LEthicia e, quica, dos seus filhos e netos.

O Ze nao movimenta multidoes por isso tenho duvidas que se amarele com o verao, se nem no festival de Jazz onde ate pandza vira jazz ele entra... nao sera desta Ouri. Eh tempo de perguntar YI XI HONO MUNI A NGA HONA MUCAVELE para apesar de ser um phd do nosso cantar e da nossa cultura ser ostracisado por quem devia abrir nossos olhos.

amosse macamo disse...

Julio, porque dizer mais? porque o faria se ja o fizeste?

Anan Cara disse...

Sou brasileiro e gosto muito da música balada para as minhas filhas, alguém, por gentileza, tem a letra dessa música em português. Obrigado.

Anan Cara disse...

Por gentileza, alguém tem a letra da música Balada para as minhas filhas, em portugues? Obrigado. Abraços desde o Brasil.

wambena disse...

a letra da musica e esta, mas nao tenho certeza se esta completa:
balada para as minhas filhas

meus filhos
cresçam em harmonia
salvando assim
vossas almas do mal
que os homens vão tecendo!

Na vida plantai flores
caminhando lado a lado
com amor á Natureza

clareiem vossas cabeças
pra se defenderem
dos muitos perigos
que enfermam a humanidade

o que é bom
é a liberdade
nos vossos coraçõezinhos
para em paz
na terra viverem

estudai muito
fenómenos da Natureza
para salvarem a verdade
perante os homens