quinta-feira, 26 de novembro de 2009

MALANGATANA

Malangatana, o músico

Não sei o que este título poderá sugerir aos que conhecem a linha do Modaskavalu. Contudo, na urgência de encontrar respostas, um primeiro pensamento há de se colocar: o que tem Malangatana a ver com a música? (eu penso que tudo).

Há em Malangatana um músico meus amigos, um músico que se revela não só nas suas pinturas, nos esconjuros mágicos e poéticos das suas aguarelas, na verdade humana imprimida no seu pincel, mas também na sua essência, na sua revelação como homem.

Tenho muitas questionamentos por fazer ao Malangatana, questionamentos estes, que em parte encontraram resposta no filme Ngwenya, o Crocodilo. É que, confessou Malangatana neste filme, o seu amor pela música, aliás, numa disputa (disputam estes uma mulher) entre ele e um amigo seu (no mesmo filme), revela e de forma espontânea o seu lado cantor, cantando, e para a feliz mulher, se não me engano ka tiku dza zonga ni langui wene nwanhana (na terra dos rongas escolhi a si rapariga...), pena que no final, a mulher ficou (?) com os dois.

E questionarão alguns que instrumento Malangatana toca?

Para além do autêntico baixo-baritono (sua voz) que o Malangatana é, tem na sua barriga, (sim, barriga, esta, que quando a sua música o invade e de tal sorte que acredita viver na consciência das suas pinturas, na espiritualidade das suas cores e olhares, no ouvir os segredos do camaleão que teima em aparecer nas suas pinturas, toca-o qual batuque), o instrumento que toca o saboroso e lídimo batuque da sua terra Matalana.

Mas no mesmo filme, Malangatane trouxe a mística canção que diz acompanhar a sua vida:

Niwone niwone niwooooneeee

Niwooneee ahe ahe ahe ahe

Niwooonneee nkodjo

Niiiiwwoooonneeee, niwoooonnneee,

aie ahe aie ahe

niwone nkhodjo

Malangatana, diz ter ouvido esta canção na sua juventude no canto de uma Nyamussoro (lembrar que Malangatana foi aprendiz de nyamussoro, onde, nada acontece, sem o batuque e o canto), e que por alguma mística a mesma, o apaixonou de tal sorte que o acompanha até hoje; que sem se aperceber, a canta quando pinta.

Devo imaginar como Malangatana, recua no tempo quando a canta, devo imaginar as mil e uma explicações que tenta dar ao canto,mas ao mesmo, imagino que a mesma seja, talvez, o exprimir do objecto intencional que o trascende, a mesma antevisão que dita as suas cores, os olhares em seus desenhos, a ressureição da sua obra, as projecções de si mesmo, como homem que, esteja onde estiver, sente-se sempre no mesmo local: Matalane.

Esta canção é para Malangatana o poder de sentir de todas as maneiras, é o medidor do artista que ele é, mistério de si mesmo, equilibrador da relação triangular, pintura, homem, mundo.

É sim músico o Malangatana(atrevo-me a dizer dos mais internacionais do pais), não de hits, nem de músicas registadas em bobine, é sim, músico da nossa curiosidade psicológica, da nossa rica metafísica, da exploração da nossa espiritualidade,do nosso amadurecimento poético, dos aromas do dedilhar sentido nos dedos longos do Jaimito Machatine, dos versos geométricos de Alexandre Langa e Fany,da expressão vibratória do Modaskavalu do Mahecuane Makhuvele, do respirar a música na perversão sensual de Zeburane em Tsunela Seyo, nos cantos embebidos de mphongolo de Aurélio Kuwano, das cores endoidecidas e transitivas de Djambo 70, no emergir dos versos de ntumbuluko de Zeca Alage....

No final, sou obrigado a dizer; primeiro o músico e depois o pintor, é que, acredito que seja no canto que Malangatana se auto-direcciona para a pintura, na certeza de que a obra será concluida com o sucesso desejável.

Meu ode a este cantor não só de cores, mas também do nosso cancioneiro e do sonho utópico de o manter incólume para que a nova geração o estude e o eleja como o sabor da nossa espiritualidade.

Ode ao músico Malangatana.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

José Mucavele: o ícone do resplendor africano

José Mucavele: o ícone do resplendor africano

Zé é para mim a expressão mais poderosa e desenvolvida da concepção renovadora e vanguardista africana.

De facto, para Zé, África é a expressão mais densa das suas obsessões; a obsessão que aponta para um despertar, para um diálogo de reinveção profunda do que somos e pretendemos ser, de militância epopéica, do protagonismo que se impõe para que a solução dos nossos problemas sejamos nós mesmos.

Zé na maiora das suas músicas, progride rapidamente e de forma profunda; eleva-se de forma nobre e indaga-se: Hi dlayana hi yivelana hili vaxi kanwe...como quem diz, porque nos matamos se mesmo povo? Porquê nos autoflagelamos se filhos do mesmo ventre: Africa?!.

Zé busca por uma espécia de panteão das glórias africanas extintas pelo modernismo que assimilamos sem nunca o perceber; Os dizeres hi dloku utivi lava lungu, hi lheka bedjua la kokwnani...(vestimos a capa do ocidente e rimo-nos da nossa tradição), nos ajude a perceber essa busca, a mesma que Zé encetou no Xigutsa xa utomi.

Ele esboça uma espécia de valores trascendentalistas que sabe que o povo africano tem demais. Procura em suas canções evidências concretas e substantivas de uma África que ainda se pode reerguer. (loko ho yaka lirhandzu linwana, xikwembu xa hina xita pfuka urhongweni), no sentido de que se construirmos uma nova união, nosso Deus [negro] vai despertar da (longa noite de sono a que está votado) letargia.

Quando coloca a ideia de que Hi lava va taku vadla teres parato kuvi hina mamanoo hidla hafo prato ..ou melhor; os que vem comem três pratos, quando a nós servem metade, longe de ser uma exaltação xenófoba, Zé,coloca as coisas no sentido de que o principal beneficiado pela riqueza que o pais (África) produz, deve ser antes os nativos, mas não; temos aqui o Xighontlo, este pássaro esperto e egoísta, que se dá ao luxo de comer todos os pratos, deixando-nos com a metade.

Há quem diz, que os versos de Zé, traduzem uma insatisfação com a vida real, na medida em que com a ideia da “aldeia global”, África, mesmo que queira, não pode pela conjuntura guardar as suas raizes, dominar o conhecimento sem fugir das suas crenças, mas eu penso, que o Zé, vive sim num mundo real, porque um povo sem auto estima, dignidade, cultura e sua forma de estar, não se pode arrogar povo.

Numa ambiciosa partitura musical e poliritmia que o caracteriza, Zé, faz da fusão e da diversidade cultural uma constante ocasião para a exortação heróica do nosso povo, a quem em algum momento e numa outra música diz que os que profetizaram a partilha do continente taparam a sua estrela cintilante, numa clara alusão a escravatura e domínio colonial sobre África, no sentido de que esta, retirou-nos toda a sorte, toda a oportunidade de brilhar, todo o resplendor africano.

Zé procura por uma existência concreta que não se pode achar e nem aproximar do conceito que o ocidente quer de nós; na verdade é no retorno a nossa espiritualidade que renasceremos para o resplendor, porque nós sabemos e bem onde a nossa estrela da sorte brilha.

Zé é protagonista de uma África real que ele aprendeu no chão da sua terra e que se lhe escorrega hoje a sua vista sem que grito nenhum possa dar.

Mas grita o Zé, grita e bem fundo nas suas músicas, traduz (ainda que intraduzível) o brado africano, a eloquência da nossa heroicidade, o lapidar de uma pedra angular onde nós seremos donos e mestres da nossa própria sina, onde, seremos os mentores das nossas políticas, onde, seremos o despertar das nossas próprias consciências, onde, seremos concebidos e percebidos pela nossa mística e não pela capacidade de renúncia da mesma mística, onde, o nosso orgulho, sim orgulho africano será a perseguição incansável dos nossos valores.

Zé caminha pelos corredores de sonho e pronuncia as últimas palavras que um dia acredito serão as primeiras: África surge et ambula.

Vim, uma vez mais, enaltecer a luta consciente do Zé pelos valores africanos, vim aqui, traduzir o seu discurso apaixonado pelas nossas coisas, vim aqui, trazer o resplendor africano sempre presente na sua canção.

Bem haja o Zé, a quem ainda vou cantar neste espaço à minha maneira, a quem vou dar sempre odes, porque guerreiro incansável da nossa luta.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

ELSA MANGUE

Elsa Mangue

Elsa Mangue é uma mulher de sentimentos intensos, de uma espiritualidade angustiante e sentimental.

É curioso verificar que a Elsa, canta os seus prantos, e penso que não para os espantar, mas, para tentar percebé-los.

É que, a Elsa, é uma mulher sofrida, sofrimento este, que ela deixa transparecer nas suas músicas, um sofrimento que se detecta em cada verso e palavra cantada, um sofrimento que se nega a morrer, isto porque ainda vive o sujeito da acção: a Elsa Mangue.

Para mim, a Elsa canta na primeira pessoa, sim, todo o seu discurso responde aos seus problemas, aos seus questionamentos, e é importante realçar que a sua dor não morre, pelo contrário, transita de música em música, é resistente, permanente, emerge a qualquer altura.

Na música “Fim da estrada”, várias foram as vezes que a Elsa, (tomada pela emoção, pelas lembranças sempre recentes da sua vida, pela dor que incomoda e traz a superfície coisas invisíveis), chorou. E chorou justamente porque ao cantar a música, ela, revive o problema que canta tal e qual o faz quando canta que ”...siku leli kaya unga lava kuni txukumeta/ murhandziwa wanga, indje wa khumbuka wena?, passando a ideia de que ”lembras-te do dia que quiseste me atirar? Lembras-te meu amor?

Aquele pronunciamento sugere mágoa, mas sugere acima de tudo um momento do passado que a Elsa quer a todo custo tomar como passado (lembras-te), mas quem repara no que ela diz logo à seguir, percebe que o seu amor não é nada do passado e é fácil perceber quando ela questiona “lembras meu amor?”

Caso para afirmar, tão longe, mas tão perto. Na verdade, Elsa nunca esqueceu este homem, aliás, a Elsa pertence a geração de “um só homem”, na vida de uma mulher.

A Elsa não faz a viragem, e nem se permite que ela aconteça, pois, quando pensamos que ela canta para exorcizar a dor e por isso mesmo esquecer, na próxima música, a temática volta e com a mesma carga de intensidade e emotividade próprios de quem chora constantemente, de quem diz “Tindjombo lava kandzaka, vatitsamela niva nkatavu kaya(/sortudos os que conseguem manter um lar, vivem felizes), não foi por acaso, que a Elsa escolheu esta música, do Rei Fany Mpfumo (no disco ao seu tributo), porque esta, reflecte o que ela pensa.

Elsa vive uma vida muito encolhida, encolhimento este que não a permite olhar para si e acreditar que é uma das melhores fazedoras da nossa música, que é dona de uma voz meticulosa, traçado com precisão notável, sensível, e que se exprime de um modo singular, uma voz que se deleita, uma voz que surpreende pela sua cor e valor.

Vejam que Elsa e mesmo para atestar que ela não esqueceu o anterior companheiro,em “Joshua” dá recados no sentido de que se queres falar comigo venha de dia e não de noite....vens a noite para me enganar pela segunda vez? (lakuta ka mina, ungati niwu siku uzama zama kuni phazamissa ulava ku phinda ka umbirhe...).

Se estivesse segura da decisão de passar este homem para trás seria indeferente que este homem viesse de dia e/ou de noite, porque passado, mas ela adverte: venha de dia se queres falar, e justamente porque ela sabe que a noite pode fraquejar.

Mas se pensam que é precipitada a minha conclusão, caminhemos juntos para uma outra música, em que ela diz “...ni ta famba hi kwini kaya ka mamani....ni kwatissiwa hi lweyi waku tsuka ani gwela ku hunguka ingu o tsuka ani kuma nani hlongolissa ndlela” (entristeçe-me que alguém me chame de louca, como se alguma vez tivesse me encontrado a vaguear e/ou a caminhar sem destino).

Para dizer que ainda lhe incomoda o facto de o ex, a chamar nomes. Numa outra música diz “wagwira munghana wa mina...vuya nitaku gwela ku duma ka hloko ya mu pfana lweyo....”, onde a Elsa, quando se apercebe que a “outra” que preencheu seu lugar tenta se meter com ela sugere um encontro para a esclarecer o quão difícil é compreender a cabeça do homem que ela tem como marido.

Mas se alguém pensa que este facto retira o carâcter estético das músicas da Elsa engana-se, aliás, este exercício, foi em parte, para defender a tese de que a Elsa canta na primeira pessoa.

Sim, a Elsa é tão verdadeira quando canta, é tão reflexiva, tão precisa, tão doce e original, porque não canta coisas contadas, canta sua vida (amargurada), na primeira pessoa.

Podia me alongar mais, contudo, chamo a sua voz mesmo que no pensamento para continuar a alisar o meu coração, para trepar os ramos mais altos e frágeis do meu coração, para me banhar de lágrimas e mesmo que ninguém as veja.

Longa vida a Elsa, e, tomara que uma destas empresas que dá ao acaso quando se trata da verdadeira música moçambicana a contemple um dia porque ela merece.

P.S. deixe-me lembrar o meu avó que dizia que a “música desta mulher tem sal”. E não tem?

domingo, 18 de outubro de 2009

Chico António, o cidadão do mundo

Hantlissa Maria ulonguela timpalha kuni mova wa muxolole

Uya ka gaza

Siyela Zulmirane timpahla leti taku made in united state ti hlanhissaca vava nuna oh ha

Unga kwati Maria ha swo uta Byala mitsumbula ....hi fuya ti homu hi rima

Lomu hiyaka kone/nahi khoma axi komu hi rima....Chico António

Chico António, o cidadão do mundo

Há em Chico António um sentido de moçambicanidade ainda não explorado. Já me explico: se podemos esperar o que as melodias e músicas de Wazimbo, Mingas, Hortêncio, Cabaço, Chihau e outros podem produzir, isto porque lhes conhecemos a linha e daí prevesíveis, já não podemos encontrar a mesma coisa em Chico, aliás, a sua imprevisibilidade, iguala-se à de Salimo, José Mucavele (basta lembrar que a guitarra de José, pode quando quer se esconder na densa savana de Chibuto, para meia volta, reaparecer e atravessar rios deste diverso moçambique num acelerar de ritmo que lembra os ataques de surpresa dos Guerreiros Chopes aos soldados Ngunis).

Chico, embarca em cada canção numa espécie de viagem sem destino previamente preparado, aliás, como o bem fazia o Ramsome, Fela Anikulapo.

A sua versatilidade, o marca não como músico moçambicano, mas africano, digo do mundo. É que, se o Chico subir um pouco até ao Centro de Africa, talvez não mexesse nada e/ou pouco nas suas canções para se confundir com artista daquelas bandas.

Se subisse um boucado mais, para a França, seria visto como um músico contemporrâneo forte, do qual não se deve atribuir país, porque do mundo.

O que gosto no Chico, é o respeito que este tem pelos momentos de avanço e pausa nas suas músicas, já me explico: quando este canta, sente-se que faz um avanço envolvente do qual não se pode ficar indeferente, pelo contrário; envolve-nos com a sua música. E quando sua voz cala, a combinação perfeita dos instrumentos desenha um cenário tal que completa o vazio que sua voz deixa e quando esta volta, a intensidade da combinação instrumentos/voz, torna-se tão intensa que o sentido de marcha da música passa a ser controlado pelos nossos sentidos onde podemos pegar por exemplo no trabalho do viola baixo e embarcarmos numa viagem na nossa própria melodia, no nosso próprio rumo e ritmo; fazendo a nossa música na do Chico.

Na veradade, revemo-nos na sua música, sentimo-nos naquele instante parte integrante, dela, sentimo.nos parte de um ritual que em algum momento da história da nossa vida aconteceu e que por reminiscência, o presente chama.

Nós africanos desconhecemos a alquimia, pelo que, ao homem capaz de nos envolver transformando nossas angústias, anseios, alegrias e sonhos em música envolvente, só pode ter um nome: um feitiçeiro.

Mas Chico, é também um homem do campo, a quem a tranquilidade rural lhe faz muita diferença, de maneira que na música acima, renuncia da vida da cidade, e, convida a mulher para juntos embarcarem no sonho de voltar ao campo para cultivarem a terra e criarem gado.

Neste convite, chega a propor a sua amada que deixe as suas roupas fabricadas no ocidente (que enlouquecem os homens), para a sobrinha Zulmira.

Um retorno as raizes entende-se, que não se esgota nesta música e naquela situação. Na verdade sinto nesta música, no convite ao retorno e no pedido que Chico faz a mulher, um pouco daquilo que o José Mucavele, faz e bem (apelo ao Renascimento africano), no sentido de volta em tudo que faz de nós africanos; ao orgulho africano.

Uma volta à necessidade de olharmos para nós dentro dos nossos próprios parámetros, para depois lançarmo-nos ao mundo com os pés firmes no chão, como Chico faz na sua música.

Este retorno, de quem já provou os prazeres da luz da cidade, confirma o que defendo acima; Chico é versátil, imprevisível, e a qualquer altura, sua música pode indicar uma direcção nunca antes enunciada.

A música do Chico tem uma dimensão cultural transcendente, tem condimentos para vencer e até para largar esta terra e caminhar no mesmo sentido que sua música incide (imprevisibilidade), e se deixar surpreender com o que o caminho vai produzir.


Modaskavalu

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Wazimbo, o nyànyànà

Wazimbo, o nyànyànà

Neste mês de Nhlàngùlà(Outubro), vos trago o canto do legítimo pássaro da minha terra Chibuto: Wazimbo.

Mas antes disso, deixem-me traduzir nyànyànà, para quem não fala changana: nyànyànà, significa em changana pássaro. Bom, ao entrarmos no campo do Português, (se bem que em changana também podemos encontrar esta conotação) quando se fala de pássaro além da ideia ave pequena, surge a de homem astuto e manhoso.

Longe de mim querer trazer estes termos para classificar o Wazimbo. É para mim pássaro, por duas ideias fundamentais: primeiro pela sua bela, doce e inegualável voz e, segundo pela capacidade que tem de ascender

Wazimbo tem uma voz com um traçado geométrico forte, voz de exigência concreta de um milagre chamado canto. Se Wazimbo não fosse cantor, seria cantor. Se não cantasse cantava. Isto, porque dono de uma voz que não permite outro ofício senão o canto. Diria o mesmo de Djecko Maria, do Dua Maciel, do João Cabaço, de Arão Litsure, Hortêncio Langa, de Gabriel Chihau, de Zeburane, ha Zeburane este rouxinol de Ntxanwane.

Mas bom, voltemos ao Wazimbo e ao fulgor que é sua voz; uma voz como disse acima não permite outro ofício, senão cantar. (ainda sonho com o dia em que o artista moçambicano, terá na sua arte a profissão).

A voz do Wazimbo refaz histórias que me foram contadas na infáncia, faz me voltar ao paraiso rural que é minha terra Chibuto, a sua voz, se distingue porque é concreta e canta uma terra concreta: Moçambique.

Convido-vos uma vez mais a ideia de nyànyànà, para um pequeno exercício de reflexão: certamente que o pássaro tem emoções não? Certamente que no seu voo tropeça, cansa-se, certo?

E agora o questionamento: alguma vez e por isso mesmo, ouviram o mudar da tonalidade do canto de um pássaro?

A resposta será não, isto porque, o canto de um pássaro é sempre o mesmo, inalterável, seguro de si, doce, cintilante, denso....é justamente como a voz do Wazimbo: verdade, desde que o Wazimbo é, sua voz nunca mudou, nunca!

Ela eleva-se e supera o seu dono (capacidade de ascender), voa versos concebidos para nos chamar a atenção de ouvir suas canções com todos os ouvidos que nosso corpo possue, como em Maria Nwahulwana, onde desencadeia com o seu canto, uma série de sentimentos, que só o despetar do terminar da música nos chama atenção: arrepios, ansiedade, paz, mesmo quando conta nesta música a estória comum de uma noctívaga; a Maria que não sabe o perigo que espreita ao levar a vida a contar farras .

Esta música, é para mim a década final do imaginário da canção moçambicana, uma música que tem a capacidade de contar uma estória comun transformando-a em doces pétalas que quedam no rio, de uma intenção poética tão forte, de uma obsessão perfecionista incrível, uma música fugaz, música feita com paixão, com crença com forças inesgotáveis, uma música que inspira.

Eu não sei dizer Wazimbo com as palavras merecidas, como não sei dizer Simeão Mazuze, José Mucavele, Feliciano Ngome, Alexandre Langa, Cabaço e outros, mas nesta página, procur-lhes com olhos emprestados de todos os moçambicanos para lhes agradecer a força incomensurável que tem de remar contra a maré e que maré. De serem gigantes no seu sentir, isso, é para mim uma autêntica expressão da fé.

E a fé move montanhas.


Wazimbo, o nyànyànà.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

UM TUTANO CHAMADO JOSE MUCAVELE

Um tutano chamado José Mucavele

Quando falamos de tutano a ideia que logo ressalta é a de “essência, parte mais íntima, e/ou âmago de uma coisa”. Pois, é esta a ideia que me ressalta sempre que falo de José Mucavele.

É para mim este, um dos mais lídimos e resistentes símbolos da nossa música e cultura, a santa ceia espontânea e natural da nossa tradição e dimensão.

Desconheço as dores deste poeta, mas as minhas, as conheço, porque as sinto de forma tão óbvia, tão incisiva, tão resistente, de tal forma que se torna impossível de delas me livrar.

São as dores de não reconhecimento destes homens (como o José), que carregam o âmbar da nossa cultura mas, mesmo assim, ostracizados até de quem tem o dever especial de os suportar.

Uma voz, guitarra e temâtica que lutam contra a surdez da música que se faz hoje. Música sem preocupação de estética, de ritmo, de mansagem, uma música que dá a sensação de bloqueio dos seus fazedores, porque executada da mesma forma e me atreveria a questionar; música?

Só o absurdo pode traduzir a maioria do que se faz hoje em dia como música, mas, esta é outra história.

Impeliu-me a vontade de escrever sobre o José Mucavele, como um pequeno ode aos meus amigos que ainda acreditam no resguardo dos nossos valores e, neste momento, minha mente desatina, porque, se nos demais actores da nossa música sempre tive o cuidado de um tema para os retratar, custa-me escolher um de e para Mucavele.

Custa-me justamente porque analisada em conjunto a música deste, aponta para uma única direcção: como suporte da nossa identidade como povo, nação, mas, se analizada à parte, encontramos fragmentos do concretismo factual do nosso quotidiano, como tribo, etnia, raça, país e continente.

Intrigam-me, com alguma fascínio a mistura, as construções filosóficas de Mucavele, que tem a particularidade de partir da menor premissa para a maior, do campo para a cidade e da cidade para o mundo.

As músicas de José vivem um objecto real: um homem do campo, que acaba personificando o homem africano e a imagem que este projecta para o mundo, e da forma como o mundo o vê e acima de tudo como olha para si mesmo.

Descobri em “Mupfana wa livala” (Pastor), outras verdades que não se circunscrevem naquele círculo restrito familiar como José dá a entender na sua música e clip (bem interpretado pela parelha Gilberto Mendes e Lucrécia Paco), onde o Mupfana (rapaz pastor de gado), é rejeitado e desprezado pelos pais da sua amada, somente porque é do campo.

Redescobri naquela rejeição, a posição do homem africano ante o mundo, que é visto com o mesmo cepticismo, desprezo, rejeição, justamente porque homem do campo (Africa), logo, atrasado, não convicto, lento no pensar, que não transforma, passivo, imediatista, etc.

Esta música é o reivindicar sempre perene de um espaço pelo homem africano e a sua inserção no mundo. É a constante negação de que não precisamos nos transformar, de adequar os nossos hábitos ao ocidente para que sejamos iguais.

O “mupfana wa livala” se perdesse o que o caracteriza, esvaziava toda a sua essência, sua vida, passaria a uma auto flagelação moral, de crise identitária que só abonaria, a quem o quer fragilizar.

Se tivesse que resumir a música e obra de José diria, que constituem uma negação deste estado de coisas, porque o africano, sabe olhar a si com belos olhos, sabe olhar a si com exigência de quem participa num projecto que uma dia há-de se cumprir: de uma ÁFRICA igual a si mesma, uma ÁFRICA que vai quebrar inteiramente o vírus da dependência, porque enquanto isso não acontecer será a mesma situação que o José canta: “hilava va taka, vadla tres pratos kuvi hina mamani hidla hafo prato”(eis os que vem comem três pratos, enquanto que nós mãe, comemos apenas a metade), para bom entendedor.

Está ai a tutanez do José, este embondeiro que resiste a todas intempéries.

Será que resiste?

Amosse Macamo

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

ODE A VIDA

Ode à vida

Bom, no sábado passado o meu amigo Nero, chamou-me a sua casa. Disse-me ele: irmanito, venha almoçar comigo e por favor traga a sua família. Era o começo deste pequeno escrito.

Lá fui eu, a Zena (minha esposa) e a Zahra (minha filha), e uma vez que ia a casa do meu irmanito, e porque a um assobio da minha casa, fiquei à vontade: chinelos, gangas, uma camisete polo e um assobio estridente cantarolando Zeburani.

Bati a porta e o meu irmanito ao abrir gozava-me: chegou o Jalaludine (pudera se o Jalaludine tivesse a minha massa cinzenta), e rimo-nos por todos motivos que este nome evoca.

Aconcheguei-me na poltrona e reparei que mesmo ao meu lado esquerdo, no canto da sala, estava o tripé, com duas garrafas de um bom vinho gelando.

Sempre que estou com meu irmanito, regrido no tempo, igual à aquela criança irrequieta que mesmo roubada a infância, ainda se lembrava de brincar. Juntos celebramos o riso, riso puro das mil estórias de vida, gargalhamos a valer, e claro, às vezes me irrito, zango mas meu irmanito, tem o dom de me aturar.

Mas bom, não foi para falar das minhas nóias que vim aqui. Queria era, dar-me por feliz, não só eu, mas também o meu irmanito e nossas famílias, em conseguirmos o que muitos procuram (esta vai para o Julio Muthisse=vingança tarda mas não falha), e se encontram, nunca em igual oportunidade como a nossa.

É que, a uma certa altura do convívio, liguei para o meu amigo a quem chamo de “poeta das boas essências”, a pedir que se juntasse a nós.

Já agora, deixem-me trazer-vos o testemunho de um homem que aprendo a admirar a cada dia: Hortêncio Langa.

Um homem soberbo sem soberba (arranco as palavras de Júlio Mut(H)isse), duma modéstia impressionante, afável, de trato fácil, respeitador, sempre actual, calmo, sempre disposto a ouvir, até quando devia falar.

E bom, dizia que liguei ao meu amigo Hortêncio e ele veio como sempre vem quando o peço e trouxe consigo, e atendendo ao meu pedido, a sua guitarra, musa que ele sabe tratar.

E tocou; tocou um tema que nunca havia tocado, tocou ainda “Maputo”, “Alirhandzo”, “Hodi”, e eu e o meu irmanito sempre a fazermos os coros. Verdade que a desafinar, mas acreditem, estava ali o forte daquelas canções: o trato fino na guitarra e voz de Hortêncio, e as nossas trapalhadas.

Oportunista como sou, tive o cuidado de registar estas canções no meu telemóvel e um dia, não estranhem se aparecer numa das tantas “labels” da capital, um CD de Hortêncio, Nero e Modaskavalu.

E nem se atrevam a questionar se Nero e Modas, cantam porque nós gritamos menos que alguns MC’s da praça.

Hoje, sexta feira, dia catorze de Agosto de dois mil e nove, a menos de dezasseis dias do primeiro aniversário da minha filha, acordei com vontade de ouvir as canções que captei naquela noite memorável e enquanto escutava, apercebi-me como a vida é bela.

Ode aos meus amigos Hortêncio e Nero a Zahra minha filha (Zena e minha esposa), que sabem me devolver o sorriso, até quando a vida me nega.

Ode aos fazedores de cultura desta terra, poetas destinados a castigos imerecidos de não reconhecimento, mas que resistem mesmo assim.

Mas esta ode, também se estende aos outros meus amigos que estão sempre comigo, mesmo quando distantes: Duma (filósofo mor), Júnior, Baúque, Mutisse (irmão na causa), Ouri (das trincheiras), Ximbi, yndo, Nyiki(irmanitas), Ndapassoa, Machel, Mapengo, Shir, Chacate, Saiete,Bayano, Nyabetse, Langa, Macamo, Muthisse mais velho, Vaz e a todos que escrevo em off para meu coração sentir, a mensagem é de vivas a nossa cultura, a nossa espiritualidade, nosso optimismo como nação, nossa força e garra, ode também extensiva, a todos fazedores da cultura, homens de verdadeira neura.

P.S. não pensei este post, ele nasceu do nada, igual ao meu caminho. Um post que me mete medo...será que vou morrer?
Nada, hoje é sexta catorze.

Amosse Macamo

segunda-feira, 27 de julho de 2009

AS GUITARRAS ESQUECIDAS DE MOÇAMBIQUE

As Guitarras Esquecidas de Moçambique: o preludiar da marrabenta

Assim é o título em Inglês (The forgotten guitars from Mozambique); e quanto a nós, um título a condizer se levarmos em conta que as guitarras lá contidas são de facto esquecidas, tão esquecidas que ninguém se digna a falar delas, mesmo quando se sabe que transcendem os limites dos seus executores, mesmo que guardado neles a gesta da nossa música popular.

São guitarras preludiosas de nomes que embora não muito referenciados, constituem o resguardo da nossa música. Estas guitarras foram captadas nos finais dos anos 50, pelo etnomusicólogo Hugh Tracey, onde desfilam as vozes e guitarras de músicos como: Feliciano Ngomes Mutano, Aurélio Kowano, Andrea Sitole, Nacio Makanda, Américo Kossa, Aurélio jefe, Alberto Mwamosi, Gabriel Bila, Alberto Fulani, Armando Muwane e Mahecuane Makhuvele.

Naquelas guitarras, reside o horizonte proclamado da nossa música contemporânea, o optimismo não apenas da condição do percurso dos guitarristas, mas também uma linha revolucionária cuja expressão de maior fôlego se encontra nas músicas de Feliciano Ngome (aliás, pertence a este, metade das 21músicas que compõem o disco) e Aurélio Khuwano (tem o maior número de músicas logo à seguir ao Feliciano Ngome).

Quando refiro-me a condição de percurso dos guitarristas, tem a ver com o facto de quase todos eles, descenderem da mesma província (Gaza), e acharem-se todos na altura da captação do disco a trabalharem nas minas de Rand, na África do Sul.

Não se pode deixar de lado este facto, porque sabemos (e este disco evidencia as guitarradas), que os guitarristas nascidos em Chibuto são em regra, exímios tocadores e que se diga, autodidactas e mais curioso ainda, o facto de todos terem aprendido a tocar com as Guitarras de lata de azeite e sempre se dirá que África do Sul era o espaço de iniciação da vida adulta destes guitarristas, espaço de intercâmbio e de alguma competição.

Quem procurar trato vocal apurado no disco, talvez não encontre, (salvo a excepção do Feliciano Ngome Mutano que tinha um trato de voz fino e apurado, digo, meticuloso) mas o pecúlio das vozes tipicamente nossas, as guitarradas, a temática (sátira e amores não bem resolvidos) que se aborda, e os sinais que se dão, em termos de execução rítmica já apontavam para o estilo próprio que se desenhava (marrabenta) e que se diga, nas músicas de Feliciano, Aurélio e Mahecuane, já se mostra concebido o ritmo, aliás, numa das músicas (Kodwa aswibassanga), o Feliciano enuncia a marrabenta, como estilo de música que fazia.

De facto quem escutas as músicas de Feliciano Ngome, e Aurélio Khuwano, sente a perenidade interferente da gesta da marrabenta, o compasso, o ritmo vibrante e pulverizador ainda que abstracto e latente.

As vibrações bem conseguidas de cordas daquelas guitarras, o ritmo sempre contagiante, a deixa das falas (do nosso saber linguístico) sempre por analisar, o fulgor, o alcance estético, o fascínio.

Um disco que se deve ouvir e atentamente, porque numa análise ainda que não especializada, percebe-se por exemplo nas cordas do Feliciano, o traço de José Mucavele, de Eusébio Johane Tamele (sobretudo na combinação entre a guitarra e a voz), dos Gallotones (Abílio Mandlaze), da música tradicional Chope, nas lucubrações de Khuwano a marca de Xidiminguana, em Wamusse o fio do Manjacaziano Alberto Mhula, Lisboa Matavele, etc.

O ritmo contagiante da música “Maluzano” (Aurélio Kowano e Alberto Fulani, uma dupla de se tirar o chapéu), esta Maluzano que é uma Nwahulwana (noctívaga) ou então de “Halakavuma” que conta a história do pangolim que desceu na machamba de Mbulu, Bilene, na altura sob jurisdição do Induna Mandjondjo, mesmo se sabendo que o pangolim serve de intróito, aliás nem é o regulado o tema principal, mas sim a Elisa Ntxanwane (música esta que foi interpretada pela Orquestra Djambo 70), que “ndzhaku ni ferente swo fana” (mulher sem atributos físicos de tal sorte que se confunde a parte frontal com a traseira, isto na zona da cintura para baixo.)

Ou então a “uta rungula wamamane lekaya, que é um verdadeiro hino as guitarradas (mas sobre a temática deste disco, prometo ainda fazer um post.)

Sempre se dirá, que vivem naquelas guitarras a nossa moçambicanidade, a nossa espontaneidade, perspectiva de progresso da nossa música, a nossa militância tanto que nação que acredita na sua cultura, a nossa feição naturalista e inspirada, nossa providência, nossas contingências, nossa força espiritual, nosso testamento filosófico.

Temos passado sim, um passado musical igual a nós: homens de tempera rija, de perfeição concebível, de um ideal de luta imanente, de sons que suprem nossas impotências, nossas dores e misérias, nossos mitos, nossas odes.

Aquelas guitarras, ainda que esquecidas, somos nós em ponto maior e a nossa missão hoje, é resgatá-las, para que não sejam nunca as “guitarras esquecidas de Moçambique; é mostrar que temos um passado cultural e que é preciso preservá-lo.”

Viva a República, digo, a cultura.

Amosse Macamo

sexta-feira, 10 de julho de 2009

João Cabaço: A luminosidade de uma voz

João Cabaço: A luminosidade de uma voz

Ocorreu-me o titulo de uma forma esporádica, mas que se diga, logo que me ocorreu, virou quase que uma obsessão.

João é dono de uma voz de todas as cores belas, voz viva de um milagre real chamado vida, voz de pura escarlate, de um estatuto puramente verbal, de refinados acabamentos, do mistério da sua própria criação poética, doce e acima de tudo iluminada.

Sim; uma voz de luz, não daquelas que ofuscam, mas peculiar, sobretudo de uma contextualidade forte, voz de transes, delírios, de concreta poesia.

Reparem, não preciso inventar palavras, nem me confundir em vocabulário de difícil acesso para evocar esta voz porque ela se confunde com a leveza das palavras comuns da vida.

Já ouvi João Cabaço cantando várias músicas, aliás, há pouco (e me condeno por ter sido tardio), tive que fazer um recuo ao Rabadab Zam´thaka, para ouvi-lo cantar e com o mesmo pecúlio e quiçá perceber donde vem o trato fino na voz, a luminosidade, o brio, o doce, o choro, o requinte e a soberba.

Recentemente ouvi-o numa das estacões de televisão local cantando e com o esmero que sempre o caracterizou uma música do Fany com requintes de Jazz e blues. Trata-se da música “niwa makhombo”, que parece resumir a vida de Fany, a sua vida, a minha.

Mas a música que me proponho a abordar hoje é a música “mamana waku”(sua mãe), uma música que para mim, merece estar no top das músicas mais bem conseguidas de sempre no pais, sim, porque nesta música, há um formidável e resoluto casamento entre o homem da cidade que se tornou o João, e o rapaz rural (do subúrbio se o preferirem) a quem José Mucavele concebeu como “mupfana wa livala”.

De facto, estes dois personagens, não resistem, não divergem, pelo contrário; convivem, mesmo que numa série de dificuldades, como é afinal a relação entre mãe e filho. Criam uma única força, para cantar a mãe na língua que ela melhor entende, para conseguirem ajoelhar suas almas e chegar lá, lá onde vive o coração de uma mãe que ama seus filhos e os quer tornar melhores possíveis.

De uma forma luminosamente superior, diz o João que “...mamana waku i shihiwa sha mussava oh wene Manuna mata”, como quem diz: sua mãe é a dádiva do mundo, meu caro Manuna...”

Nesta música, João encontra nos sábios conselhos que dá a Manuna (porque ele já consegiu chegar ao coração da mãe), uma gruta para se refazer a si próprio, mostrando aos outros o valor do respeito, da humildade, do génio que sabe reconhecer o ventre gerador e renasce em belas falas para perfumar com a sua voz a simbologia da vida, do amor, do seu lugar como filho, e desperta nos outros o sentimento de questionamento; o que representa para si a sua mãe?

Esta música, me causa sempre algumas barreiras que parecem intransponíveis, porque sinto que ainda não encontrei a posição que o João dá a sua mãe.

É que, tenho a impressão que meu coração tem esconderijos, verdadeiras grutas onde me escondo, e, sem que eu saia de lá, será difícil senão impossível encontrar em minhas falas o lugar para a minha mãe.

Verdade é que sempre foi difícil uma conversa entre mim e minha mãe e talvez, este seja o erro da educação de ontem, a falta de diálogo, a questão da fala que remete ao olhar no olho e descobrir outras verdades.

Mas talvez me pareça com o João, porque acredito que em algum momento, houve uma renhida luta com ele mesmo e depois um despertar filosófico, onde, deve ter passado por todo este processo, até descobrir na canção a melhor forma de dizer as coisas à sua mãe e porque eu não tenho o dom do canto, vou-me socorrer das suas palavras e da sua linda canção para dizer que a minha mãe é a alma, a dádiva deste mundo, meu farol em noites de pranto, a mulher que tenho certeza de que manterá seus braços sempre abertos, minha direcção quando me perco, minha inspiração e mensagem de esperança até quando o mundo parece não querer me dizer nada, meu alicerce, esta dádiva e mesmo que minhas falas não o digam, meu coração sabe.

Ode ao Cabaço, esta voz fresca, relevante, de invenção alquímica, construída não em nenhuma academia, senão, a de oralidade popular, do comum existir, onde o simples é belo, como o amor de mãe para com o filho e vice-versa.
Amosse Macamo

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Modaskavalu, Ghorwane, Gallotones, Mingas e eu

Modaskavalu, Ghorwane, Gallotones, Mingas...

O meu amigo Custódio Duma é testemunha: não poderei sair de casa nas proximas 3 semanas.

Diria eu, “médico cura-te a ti próprio”, porque quem criou esta condição fui eu, já me explico:

Sexta feira sai para ver os Gallotones (Ximanganine e companhia), no lançamento do seu álbum, na AEMO.

Na verdade ligou-me o meu amigo Hortêncio, chamando-me atenção. Lá fui a correr e cheguei a tempo de ouvir quase todas as músicas do novo álbum daquele grupo que tem como título Hanya (viva), mas sobre este, falarei no momento certo.

Normalmente, quando saio às sextas, não posso mais sair no sábado, (família, e a questão dos créditos conjugais que não podem degenerar em débitos, quando a classe dos madlaya nhocas cresce de forma galopante), mas tinha na mente que Ghorwane iria tocar no sábado.

Sai lançado para a AEMO e é lógico que não poderia perder a oportunidade de ver o espectáculo, comprar o disco, caçar os autógrafos, bater um papo embalado pela boa música da minha terra....

No final do espectáculo eu e meu amigo Hortêncio ficamos a cavaquear e levamos algumas horinhas que pesam em longas horas quando se chega a casa.

Voltei para casa e para acalmar a minha “Dilikaze”, como ousa chamar Zeburani à sua amada, comprei umas Redd´s e até consegui alisar tudo.

E o dia seguinte.....
Meu Deus como dizer que voltaria a sair, no sabado?
Quando devia fazer aquele papel já conhecido de ajudar nos deveres de casa (arrumar a sala) e brincar com a nossa caçulinha, cantando e dançando para ela Marracuene vamu tekeli Podina de Dillon, o Nkutumula, sim, esse meu irmanito malandro, tirou-me de casa e voltei quase às 20 horas...

E esta?
Bom, devo dizer que na saída que tive com o Nkutumula, fomos a tempo de apanhar um larápio que acabara de roubar e violentar um turista brasileiro e conseguimos como bem diz a nossa Polícia, “neutralizá-lo”, só não recuperamos o telefone (pena).

Contei estas emoções à minha mulher e logicamente que ela não acreditou, mas o mais difícil vinha: informá-la que tinha de ir ver Ghorwane.

A única forma, pensei comigo, era fazer promessas (e sou bom pagador de promessas) e fí-las, prometi dia seguinte mesmo com ressaca levar-lhe o mata-bicho na cama, arrumar a casa toda (com a casa de banho inclusa), fazer almoço e ainda visitar a mãe dela (minha sogra) e prometi mais e desta promessa me arrependo: prometi não sair nos próximas três fins de semana!

Meu Deus!
Como farei me digam, como hei-de eu viver nas próximas três semanas?

Não achem que reduzo o aconchego do meu lar e /ou pensem que não tenho amor suficiente em casa; pelo contrário: só que, na Rua d´arte, Gil, Africa Bar e alguns outros cantos desta cidade onde tocam os bons músicos da minha terra, vive o Modaskavalu, o outro “eu” e este, é preponderante para o equilíbrio emocional de Amosse Macamo, o diligente chefe de família.(ou que se quer).

Seja como for, se minha mulher não ceder a minha cara de pena, vou ter que ficar em casa porque prometi. Far-lhe-ei os desejos porque ela merece.

Mas sempre direi que valeu à pena ter saído neste fim de semana, porque os Ghorwane, deram um espectáculo gigante como eles e eu cantei muito, (e delirei quando cantaram u yo mussiya kwini de Pedro, Mavabye de Zeca, Txongola de Chitsondzo, Massotchua....,

os Gallotones foram iguais a si mesmo, cantando temas que me fizeram recuar a minha colorida infância, como o Ximeliana Dzukuta e mais, no espectáculo destes, tive a oportunidade de conhecer a voz que invade os meus deuses em noites de grande meditação: a Mingas e fiquei mudo, igual aquela sensação que tínhamos em adolescência, quando colocados pela primeira vez em frente da mulher que queremos...(mas, ainda deu para falarmos de Mamani e fiquei feliz, mas muito, por saber que a Mingas tinha lido o meu texto e gostou).

E ainda no mesmo espectáculo, pude privar com a Paulina Chiziane e ouvir os seus legítimos desabafos sobre o estágio da nossa cultura (conversa interessante esta e que prometo vos revelar aqui)

Pude ainda, apertar à mão ao Marcelino dos Santos (e acham pouco isso? Acham? Bob Marley, quando voltou de Zimbabwe, onde fora dar um espectáculo na comemoração de independência daquele país, um grupo de jornalistas ocidentais o interpelou, para saber como fora a experiência ao que respondeu que para além do bom espectáculo, lhe foi dado uma parcela de terra. E sobre este facto, dizia Bob: “fui dado terra, por quem a libertou”. E eu digo: fui dado a mão, por quem libertou esta terra e isso não é pouco meus amigos).

Valeu mesmo e as próximas três semanas, (meu Deus), as próximas três semanas, serão dedicados à minha família, outra parte do Modaskavalu que é preciso preservar, aliás, se tiver que vencer uma parte nesta guerra (que deve inexistir), vencerá a minha família...mas Modaskavalu......hei vakithi.

P.S. me desculpem as gralhas neste texto, foi tirado de dentro para fora e sem cuidada revisão e se não encontrarem neste texto, o nexo causal entre ele e o Modaskavalu, não se preocupem meus amigos e nem tentem me perceber...devia neste espaço, entrar o texto que escrevi sobre João Cabaço e a música mamana waku, mas quis o maldito computador, complicar minha vida: o texto sumiu e nenhum pensamento, vai superar, ainda que defeituoso, o que tinha imprimido para escrever sobre João...raios, parece que as três semanas já começam a surtir efeito....

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Ghorwane: o Pêndulo

Ghorwane: o Pêndulo
O pêndulo é “um corpo suspenso na extremidade inferior de um fio ou vara metálica, servindo para aprumar ou realizar o movimento de vaivém”
O pêndulo sugere, oscilação e vibração. É na verdade a seta de tempo, que vai vagar entre o passado, o presente e o futuro.

Ora, que pertinência tem a questão do pêndulo, quando o assunto é Ghorwane?
Tem toda a pertinência, isto porque Ghorwane, é este pêndulo, que sempre que o ouvimos, buscamos muito do seu e do nosso passado, embrenhamos no sonho acordado do presente e porque o rigor está sempre presente nesta banda, antevemos o seu futuro de fulgor.

Na nossa cultura, os nossos mortos nunca partem, como sombras, nos perseguem, vivem connosco, e em algumas ocasiões, cantam e dançam connosco e Ghorwane tem este efeito evocativo, porque sabe e muito chamar seus mortos e nunca os deixar morrer… dai que, mesmo somando anos de desaparecimento do Zeca e Pedro, os mesmos sempre vivem e quinta-feira, vão sempre viver connosco e quando ouvirmos as suas músicas, não vamos chorar, vamos sim, vibrar (ideia de vibração do pêndulo), e nessa altura com certeza de termos vencido a morte, porque lembraremos o Pedro/Zeca, com alegria e com certeza de que eles vivem.

Esta é a costela de Ghorwane, a quem Mia Couto apelidou e com um cunho certeiro de “fazedores de alegria” e não tem razão?

Pois, a banda vai actuar na quinta-feira na Rua d’arte, numa actuação de reencontro com o seu público e de preparação de um outro espectáculo, em outras terras: Brasil.

Então meus bons amigos, quinta-feira está marcado o encontro na Rua d’arte….. e porque não terminar evocando uma musica que serve de intróito:

Ghorwane hewenoooo ho hoo, Ghorwane heweno ho ho
Na ye Zeca Alage hewene ho hooo, Ghorwane hewene
Na ye Pedro Langa hewene ho hoo, hewenoooo
Hambi na Macuacua hewneoo he he he…….


O que se segue a esta introdução é uma festa inigualável e de tamanho das nossas alegrias....

terça-feira, 31 de março de 2009

Mingas, a Diva

Mamani
Hambi no vona waku ni nyoxissa
Timbilu to banana loku ndzi dzimuka wene mamani

Lava hinkwavo valanguiwike hi mbilu yanga
Akwaku ava lunganga mamani

Oh hiyo io io io io

Niza ni tsama lani ni siku lani niya tsama le
Nani navela ku zhulissa moya wanga mamani

Oh hiyo io io io io

Oh mamani

Kassi udjula niku yini mamani
Swaku nienctha hikuni tsotsitela swanga nova ngwana
Swaku nienctha hikuni possita, swanga nova papela
Swaku yientcha hikuni chavissa swanga nova mpahla mamani

Nili vona hi wene’/nili vona hi wene/nili vona hi wene mamani
-Mingas



Mingas; a diva

Mingas é uma voz feminina de alcance estético inigualável. Uma voz que me lembra a harmonia do voo e canto dos pássaros; sim, o encantador voo livre, sem ruídos, sem acidentes, sem tombos; deslumbrante como o último fio de luz do sol que o pássaro atravessa.

Uma voz fresca, intima, de um existir autêntico, explicita, permanente, sólida, que sabe tirar partido de suas falas.

Bom, dirá o amigo leitor que é muita poesia para classificar uma única voz e concordo.

Hesitei muito para escrever sobre Mingas, pois, não reconheço em mim propriedade, para falar de uma poetisa de rigor como ela.

Atravessam-me agora arrepios: mas porque comecei? Agora já não tem volta: devo levar esta tarefa até ao fim.

Numa sociedade como a nossa, exageradamente simplista nas análises e nas categorizações, em que qualquer cantora é considerada e/ou se considera diva, me questiono o que será a Mingas?

A tensão que a resposta carrega, impede-me de dizer metade do que ela seja porque, tal como nas primeiras palavras em que a tentei descrever, dirão: poesia.

Hoje, mais do que a tentativa de dizer quem é a Mingas, escolhi uma canção de nomeação cuja carícia de voz me empolga; trata-se de mamani.

Mamani, simboliza o eterno conflito das mães quererem mandar nos amores das suas filhas (filhos). Em mamani, Mingas questiona: o que queres que eu faça minha mãe? (U djula niku yini mamani?)

Este questionamento põe a descoberto, um pássaro que se quer libertar mas, ao mesmo, sente que não está pronto para o voo. É a voz de uma filha que quer contestar, mas sabe que deve ouvir a voz da razão: a voz materna.

Este questionamento é a queda de uma gota de quem reclama o seu próprio espaço, o livre arbítrio, um visível existir que a mãe a nega, tudo porque sua filha e, logo, com dever de ouvir sua voz.

“O que queres que eu faça mãe, porque, mesmo que encontre quem me agrada, meu coração bate quando me lembro de si (hambi no vona…..)

Um dos traços mais evidentes da sociedade e época em que cresceu a Mingas (falo da sua juventude), tem a ver com a valorização extrema da figura materna que encarna(va) toda a sabedoria, experiência, uma imagem dominante do social, onde as filhas tinham pouco ou nada a dizer na escolha das suas relações afectivas.

Mas esta mulher que Mingas retrata, já tenta, embora não contrariando, questionar esta sociedade quando diz a mãe que “chegas ao ponto de me atiçar como se fosse cão, me envias como de papel me tratasse, e me vendes, como se de roupa me tratasse!”

Ora, não há dúvidas, que esta música é a negação da perspectiva redutora da mulher, da tendência super protectora das mães, dos postulados de extremos em nome do bem-estar dos filhos quando, muitas vezes, o bem-estar pode evocar abismo.

O que queres que eu faça mãe, se meu coração me diz o contrário?

Bom, esta pergunta a Mingas não a lança explicitamente, mas o seu canto, tange a isso, porque seus olhos, seu coração, seu desejo irreprimível de mulher, a indica uma direcção, quando a mãe, quer que ela vá noutra.

Feliz ou infelizmente, grosso de mulheres da geração da Mingas, aceita todos os opróbrios ao lado de um homem que as espezinha por completo, isto porque as mães, mesmo que nessa condição, as convencem de que aqueles são seus homens, quando na verdade são os homens que as mães escolheram para elas.

Este sentimento, está patente na música quando a Mingas, segura de si, diz a Mãe Nili vona hi wene’/nili vona hi wene/nili vona hi wene mamani, no sentido de que olhe o exemplo que és mãe, achas te mulher feliz? Agiu certo a sua mãe em escolher o marido para si? A sua vida de prantos demonstra o contrário, agora; como podes querer o mesmo para mim mãe?

Mamani é um hino contra a repressividade e autoritarismo desse tempo em que as mães ordenavam e as filhas, cegamente, obedeciam numa situação que em nada que se parece com o modernismo que se vive hoje, onde o sonho, a ideia do sexo descomprometido, a ferrada romântica, a ideia de liberdade, não deixam que os pais opinem, tanto mais mandarem no amor dos filhos.

Bom fica aqui em mamani a ideia de oscilação entre dois períodos; um de autoritarismo, mas que mantinha coeso a família, outro de liberdade que hoje se vive mas que a fragiliza.

Mas talvez o mais importante nesta música seja a forma sofrida com que a dona a trata. De um timbre que impõe luta, Mingas vai fazendo desta, dor das demais mulheres, vai celebrando sua dor com o canto, e traída pelo sopro majestoso do Matchote não se contém e chora, mesmo que no silêncio, yio, hio, yó yó yó, yo yo mamane/kasse u djula niku yini mamani “o que queres que eu faça mãe?”

Mingas é sim uma diva, uma verdadeira diva, de têmpera rija, de encanto no canto, meu rouxinol em noites sofridas.

Amosse Macamo
Arranjo do texto: Dr. Júlio Mutisse, o Subversivo.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Impacto da Urbanização sobre as Práticas Musicais




Nota: O que se segue, é um trabalho, efectuado por um grupo de estudantes do Curso Superior de Música da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane e me foi entregue pela mão de Horténcio Langa (o poeta das boas essências), um dos integrantes deste grupo, denominado “Grupo 3”

E não estranhem que assim seja, porque um dos compromissos do Modaskavalu, quanto que Blog de música, é de trazer reflexões de diversos pensadores sejam eles estrangeiros ou moçambicanos, sobre a nossa música, matéria que se sabe, pouco explorada.

O amigo leitor, vai perceber que o texto é um bocado longo, mas não se preocupe, porque de uma escrita ágil e de um tema que é actual.

Não mexi nada no trabalho de forma a manter a sua fidelidade. Este texto inaugura uma outra fase do Modaskavalu, que se pretende de comparticipação, de envolvência, de troca de informações, de busca de fontes sobre a nossa música.

Deliciem-se e acima de tudo, comentem, para que os fazedores desses estudos, sintam que não fazem nenhuma travessia de deserto.

O resto, o texto vai falar por si
Modaskavalu



Impacto da Urbanização sobre as Práticas Musicais


Abstracto

Este trabalho foi efectuado por uma equipa de estudantes do 1o ano do Curso Superior de Música da Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane, com o objectivo de ser apresentado em seminário no contexto da semana intercalar do calendário académico.
Ele visa, sobretudo, lançar uma luz sobre as questões referentes ao fenómeno da urbanização e sua influência sobre as práticas musicais tendo como exemplos os casos ocorridos nas cidades de Maputo, Beira e Pemba, sem deixar, contudo, de referir os casos de outros países estudados por cientistas das mais diversas áreas de estudo do comportamento das sociedades.
Ele teve como base fontes bibliográficas existentes. Lamentavelmente, no caso do estudo da música moçambicana, várias foram as dificuldades encontradas, devido à escassez de fontes.
Com este trabalho o grupo pretende:



 Lançar uma luz sobre as questões referentes ao fenómeno da urbanização e sua influência sobre as práticas musicais;
 Fazer uma reflexão sobre as características da urbanização, suas causas e efeitos na cultura e comportamento social;




1. Introdução

A urbanização é um fenómeno cuja compreensão nos remete à época da formação das primeiras sociedades sedentárias e na definição de respectivos caracteres identitários como a raça, o parentesco, as afinidades religiosas e culturais, formas de produção, interesses comuns, partilha, etc…

A descoberta pelos navegadores europeus do chamado Novo Mundo, nos meados Séc. XIV, ditou o estabelecimento de rotas marítimas, criando condições para trocas comerciais e tráfico de escravos bem como para uma movimentação migratória de pessoas dos diversos continentes, de diferentes culturas, crenças e estratos sociais, em busca de oportunidades nos territórios recém-descobertos. Assim, os grandes aglomerados populacionais eram constituidos por distintos micro-grupos étnicos, com as respectivas identidades e práticas culturais. Como consequência, a urbanização no novo Mundo deu-se de forma sui generis, particularmente pela mistura e sedimentação de valores culturais que, posteriormente, viriam a caracterizar, entre outros, o meio musical urbano destas novas sociedades.

Falar da urbanização hoje implica falar da história da humanidade, da formação das cidades criadas em consequência do crescimento e movimentação de grupos humanos. Segundo Bruno Nettl (1930:xx), esta matéria está condicionada a novas disciplinas tais como a antropologia urbana, sociologia urbana e o planeamento urbano. A afirmação se circunscreve no facto de que o ambiente urbano determina a actividade humana e a interacção entre diferentes grupos populacionais em tudo o que diz respeito à sua condição social, cultural, professional, económica etc…

A concentração de pessoas provenientes de diversas etnias e grupos culturais tem como resultado a troca de valores culturais que, por consequência, produzem uma miscigenação cultural.

O presente trabalho cingir-se-á nas seguintes áreas de estudo:

 Estudo da música urbana

 Casos estudados
- Música brasileira;
- O soul music dos EUA;
- A música de Moçambique: Norte, centro e Sul


2. Música urbana

Bruno Nettl no seu artigo Musique Urbaine, refere que o termo música urbana designa a que caracteriza a cultura e correntes musicais das sociedades urbanas. A principal característica das sociedades urbanas é a sua dinâmica que consequentemente influencia as práticas culturais (2005).

Esta interacção cultural resulta na adopção de valores ocidentais ou na manutenção dos géneros tradicionais com mistura dos elementos ocidentais adquiridos. Os processos em que esta interacção ocorre são variados, sobrepõem-se e são facilmente confundíveis. Um desses processos pode ser designado de ocidentalização. Na sua forma simples o conceito é usado para descrever a absorção de elementos ocidentais dentro da música, muitas vezes, em detrimento das características naturais do género… ela consiste na introdução de instrumentos, harmonias e anotação, bem como as tecnologias de gravação e de radiodifusão, o outro consiste na adopção de elementos da cultura ocidental sem, contudo, alterar os elementos essenciais da música tradicional (Nettl, 1930:10).

Muller e dos Reis, (2005) afirmam que a cultura tem como características transformações graduais, diferenciação com a distância de origem e homogeneização com a proximidade social. E questionam, a dado passo, se é possível a preservação dos elementos tradicionais da cultura, apesar dos impactos provocados pela globalização...

2.1. O caso do Brasil

Tomando a Cidade Brasileira do Rio de Janeiro, como exemplo, podemos ver reflectida a presença das culturas: ocidental, através dos colonos portugueses, e a africana, transportada pelos escravos idos do continente negro. Se bem que estas sejam marcantes, é digno de nota que outros povos aportaram a costa do território brasileiro levando consigo suas danças, sistemas musicais, instrumentos, religiões e crenças. Assim, a música brasileira é resultado de um caldeamento de vários sistemas musicais e teve a miscigenação como factor cultural da construção da sua tradição musical, forjando a coesão de elementos constitutivos da sua nacionalidade musical.
Segundo Luiz Otávio Braga, “as crónicas de 1910 sobre Chiquinha Gonzaga já a ela se referiam como personagem de grande importância na evolução da música popular urbana do Brasil”. Outros estudiosos procuram demonstrar a originalidade da música carioca, primeiro, através do samba e no segundo caso, do choro (BRAGA, 1978).

Carlos Sandroni refere que “o samba carioca tem inúmeras variantes, mas uma diferença especialmente importante tem sido sublinhada pelos historiadores do género entre o samba que se fez nos anos 1910 e 1920 e o que foi feito dos anos 1930 em diante. No início do século XX, quem falava de samba no Rio eram sobretudo as pessoas ligadas à comunidade de negros e mestiços emigrados da Baía, que se instalavam nos bairros próximos ao cais do porto, a Saúde, a Praça Onze, a Cidade Nova. Estas pessoas cultivavam muitas tradições da sua terra natal” (SANDRONI, 2004).

2.2. A música nos Estados Unidos da América

Outro exemplo digno de referência é a música Soul, dos estados Unidos da América, que nasceu durante o final dos anos 50 e início dos anos 60 entre os negros norte americanos, cujo desenvolvimento foi acelerado graças a duas tendências: a urbanização do R&B, e a secularização do gospel.

Socialmente a grande audiência de adolescentes brancos que ouvia cópias ou covers brancos do R&B e sucessos do Rock, começou a demandar gravações originais dos artistas negros. Nos fins dos anos 50, este movimento originou uma busca de versões vendáveis da música, por parte dos agentes discográficos.
Durante os anos 60 o soul music era popular entre negros nos Estados Unidos da América, Europa e África. Artistas do chamado Blues, “eyed Soul” (soul branco, músicos brancos que tocavam para plateias brancas).

O blues é um estilo musical vocal e instrumental que evoluiu dos espirituais, cânticos e canções de trabalho afro-americanos e tem a sua raiz estilística na África Ocidental e tem exercido, actualmente, uma grande influência na música popular ocidental, com expressão no ragtime, jazz nas Big bands, Rithm &Blues, rock’n roll, na música country, na música Pop convencional e até na música clássica moderna.

2.3. A música urbana em Moçambique

Por seu turno, em Moçambique um importante factor que favoreceu a mudança de comportamento cultural foi a migração das populações rurais para os centros urbanos bem como para as minas e plantações da República de África do Sul. Aqui, os músicos que antes usavam instrumentos artesanais, substituem-nos por outros de fabrico convencional, como a guitarra acústica, bandolim, concertina e acordeão.

No meio urbano, sob governo colonial, haviam músicos populares, nativos das zonas rurais próximas das cidades, que usavam já instrumentos convencionais, que por serem uriundos do campo, praticavam uma música que se caracterizava pela manutenção do estilo genuinamente tradicional, recorrendo apenas à transposição das harmonias para uma instrumentação moderna, nalguns casos, transferindo células rítmicas dos instrumentos tradicionais, como a mbira e a timbila, para os instrumentos modernos (LANGA, 2002).

Com a introdução de novas tecnologias de comunicação, a música ganhou expansão através da transmissão radiofónica e divulgação discográfica. Como exemplo podemo-nos referir à criação, no ano de 1933, do Grêmio dos Radiófilos, posteriormente transformada em Rádio Clube de Moçambique, cuja função foi bastante relevante na divulgação de gêneros musicais estrangeiros e ainda no registo fonográfico das músicas feitas por músicos locais (LANGA, 2002).

2.3.1. O caso de Maputo

De referir que devido à sua localização a Cidade de Maputo foi a que mais se notabilizou no processo rápido de urbanização cultural e musical, e a que mais influências externas sofreu. A convergência cultural resultante da vinda de povos dos mais variados quadrantes do mundo, bem como a proximidade da República da África do Sul, foram factores que muito contribuíram para o efeito. Importa ainda dizer que os compounds foram um lugar de interecção cultural que favoreceram o florescimento da miscigenação cultural musical.
A baixa da cidade, zona ferro-portuária freqüentada por prostitutas e marinheiros, estivadores e boêmios, representava a vida nocturna e é lá onde se assiste ao surgimento de “... uma classe de músicos profissionais versáteis, habilitados no acompanhamento de conçonetistas e bailados. Aprendendo e adestrando-se com músicos vindos das mais diversas partes do mundo.” ibid

A sungura, vulgarmente denominada xingwerengwe, foi um gênero musical fundamentalmente executado nas zonas suburbanas e rurais, tendo a zonas periurbana e urbana adoptado preferencialmente gêneros de influência latino americanos, norte americanos e europeus tais como o soul music, o baião, o samba, a rumba, apenas para referir alguns exemplos dos vários estilos cuja influência se fez sentir nos meios artísticos moçambicanos.
Hortêncio Langa no seu artigo “desenvolvimento do panorama musical em Moçambique” afirma que as associações culturais e recreativas, bem como os clubes desportivos tiveram um papel extremamente importante na preservação de uma cultura popular isenta, incentivando e promovendo a música, a dança, o teatro e o desporto no seio das colectividades, contribuindo assim (...) para a formação da identidade e consciência nacionalista (2002).



2.3.2. O caso de Pemba

A Cidade de Pemba, na província de Cabo Delgado no Norte do pais, é constituída por quatro principais grupos étnicos, sendo eles Macuas, Macondes, Muani e Màkwe, pode ser tomada como mais um exemplo do processo de urbanização. Aqui, assiste-se à convergência de vários segmentos destas etnias, devido à guerra, a factores climáticos e ainda à atracção exercida pelas actividades económicas (portuária ou pesqueira). Neste seu êxodo para a cidade estes grupos transportaram as características próprias da sua cultura de origem.
O litoral da província de Cabo Delgado é, predominantemente de influência árabe nos usos e costumes e na prática da religião muçulmana. Assim, a interecção entre estas culturas do interland e a cultura de origem árabe e ocidental prevalecentes na cidade, originaram uma fusão cultural. Por exemplo, a dança tufo, que era inicialmente praticada por homens em cerimónias religiosas denominadas “maulide”, festejos do 6º mês do nascimento do profeta, ou no ritual da saída dos jovens dos ritos de iniciação, ou ainda em cerimónias nupciais religiosas “chuo”, passa a ser praticada por ambos os sexos. No período da Luta de Libertação Nacional, e no pós-independência, foi também usada como canção de mobilização popular.

Na zona planáltica de Mueda, encontramos a dança mapico, que em tempos mais recuados o lipico (dançarino) era preparado com antecedência de uma semana após o que voltava a subir ao palco sem o conhecimento de outras pessoas. O lipico era considerado um ser místico vindo das montanhas e só podia ser representado por um homem que tivesse passado pelos ritos de iniciação e com uma coreografia natural. Actualmente, o mapico perdeu o seu significado mítico, chegando até, a sua instrumentação e ritmo a serem integrados em canções e música urbanas e a sua dança a ser praticada por todos.

Em Pemba, a dança niketche, da região sul, é também um exemplo que mostra ter perdido o seu rigor. Os jovens tendem a moderniza-la com acompanhamento de intrumentos de origem ocidental, resultando daí uma autêntica fusão.

2.3.3. O caso da Cidade da Beira

Localizada na província de Sofala, a Cidade da Beira cujas populações são predominantemente das etnias Sena e Ndau que, movidos por factores socio-políticos e económicos, entre outros, viram-se obrigados a abandonar o seu meio rural em busca de melhores condições de vida nas cidades e vilas, levando consigo todo o seu repertório definido por hábitos e costumes característicos do seu meio.
Para uma melhor compreensão daquilo que são os resultados do processo da urbanização, no modo de fazer a arte musical naquela cidade, tomamos como exemplo dois estilos musicais tradicionais: a mandoa praticada pela etnia Ndau e o Utse, pela etnia Sena.

A mandoa é, no seu contexto social, praticada normalmente no mês de Julho depois da colheita. E é caracterizada pelo uso de instrumentos tipicamente tradicionais como a marimba, a gocha, os batuques e apitos, sendo este último o que guia a troca de pares no acto de dança. A indumentária consiste no uso de capulanas por parte dos homens e, das mulheres o uso de qualquer roupa indispensável para dar uma estrutura sólida à dança.
Todo este conjunto de atributos caracteriza a mandoa original da região povoada por esta etnia. Hoje pode-se ouvir na mandoa executada por jovens músicos beirenses, elementos significativos que constituem as bases que sustentam a sua originalidade. Deste modo, sem contudo perder o seu sabor, ela tende a ser requintada, com a substituição dos seus instrumentos artesanais por convencionais, com vista a torna-la mais moderna e capaz de responder as exigências do mundo cultural urbano.
Outro exemplo é a Utse. Esta é tocada e dançada maioritariamente por mulheres jovens. Os homens ficam encarregues do manejo dos instrumentos acompanhantes, (sendo, por vezes, manejados pelas mulheres). A indumentária dos praticantes é constituída por capulanas de chita para as mulheres, e saias de folha de palmeiras ou de bananeiras para os homens. Ela é tocada em grandes celebrações cerimoniais, servindo de suporte ao ritual. Porém, hoje ela é também executada nas zonas urbanas, num contexto social diferente com utilização de instrumentos convencionais, não escapando assim às consequências impostas pelo processo de urbanização.

3. Conclusão

Nos nossos dias, a cidade tornou-se num entreposto de troca de saberes, ideias e padrões comportamentais que sumarizam identidades dentro da aldeia global em que o mundo se transformou, pela utilização de tecnologias avançadas de comunição que permitem estabelecer contactos imediatos e directos com realidades e práticas culturais entre povos e pessoas distantes. Por ser, a cidade, uma unidade populacional caracterizada por um contacto constante e activo entre pessoas de diferentes culturas e estratos sociais, segundo Muller e Reis, (2005) “é possível encontrar influências resultantes destes intercâmbios culturais, que, por vezes, levam ao esquecimento das práticas tradicionais provocando, consequentemente, um progressivo desaparecimento dos aspectos fundamentais dos valores culturais”

Todavia, da bibliografia consultada, e do que é comummente conhecido, o grupo constatou não haver, até hoje, dados evidentes de que povo algum tenha sido sujeito a um processo de assimilação cultural acabado e definitivo, por via da colonização ou por qualquer outra via. Assim, considerando que a cultura não é motivada por factores biológicos e que os seus caracteres identitários são elementos de valor espiritual que determinam no ser humano a predisposição natural de os preservar como tradição, concluiu que o ser humano é, simultâneamente, criador e fiel-depositário da memória colectiva que comporta o seu “Ser” cultural que deve ser transmitida de geração em geração.
Esta constatação do grupo encontra suporte em Jung o qual presume que os elementos estruturantes da psique são motivos míticos “que correspondem a elementos estruturantes colectivos da psique humana em geral e, tal como os elementos morfológicos do corpo humano, são herdadas.” Tais elementos estruturais psíquicos exigem a presunção duma reemergência “autóctone.” (PATAI, 1972).
Se bem que as novas tecnologias sejam instrumentos de difusão massiva de culturas alheias, ou de uma massificação globalizante dessas culturas, por outro lado, são também instrumentos extremamente úteis na recolha, preservação e difusão das culturas que, no espaço e no tempo se manterão como marcos indeléveis da identidade dos povos.








4. Bibliografia


BRAGA, Luís
1910 “Música Urbana no Rio de Janeiro entre 1930 e o final do estado novo”

HACALIZE, Domingos et alii
2005 Canção, dança e instrumentos de música tradicional
Nos Distritos de Búzi, Dondo e Marromeu. Província de Sofala
Casa da Cultura da Beira

LANGA, Hortêncio
2002 “Desenvolvimento do panorama musical em Moçambi
que” Lusografias Imprensa Universitária. pp125 - 132

MULLER E DOS REIS
2005 Revista Ágora - www.fes.br/revistas/agora/ojs/ - Campo Grande, v.1 n.4.Página 1

NETTL, Bruno
2005 “Musique Urbaine” in Musiques: Une encyclopedie
Poor le XXIe siécle. Musiques et cultures (3) 593-611

SANDRONI, Carlos
2003 “Transformação do samba carioca no séc. XX”. Textos do Brasil – Música popular brasileira no 11 pp 78-83

PATAI, Raphael
O Mito e o Homem Moderno, Editora Cultrix, São Paulo p 31







Maputo, 2006-10-04