Moçambique: arqueologia musicalEmerson Santiago
Emerson Santiago,
Moçambique,
Música,
TO NEM AÍ Quinta-feira, 05 Junho 2008
TÔ NEM AÍ, por Emerson Santiago
Tratar de lusofonia sem abordar assuntos relacionados a Brasil ou Portugal. Será que consigo?
Dos países de língua portuguesa, Moçambique é aquele com a maior herança musical registrada. Saiba por quê
O ano é 1930. Os efeitos da quebra da bolsa de Nova Iorque logo ecoariam em todo globo, trazendo uma década inteira de retração econômica. Num cenário assim, você, caro leitor, deve achar improvável haver uma mente sã desejando investir na acanhada, pachorrenta e subdesenvolvida colônia portuguesa de Moçambique. E, pior, num setor secundário como o do entretenimento, em particular o do mercado musical. Pois não é que havia gente disposta a isso?
Apesar da incrível e notória musicalidade de todos os povos do continente africano, não encontro até hoje uma só alma que creia que na Moçambique dessa época haviam artistas gravando e vendendo discos com uma facilidade impressionante até para países do chamado “primeiro mundo”. E mais, a produção musical moçambicana foi de tal maneira diversa e extensiva que temos o privilégio de dispor, hoje, da cultura musical deste país em sua totalidade, desde as mais tradicionais peças folclóricas até os sucessos populares das décadas passadas, coisa que definitivamente não aconteceu com Brasil ou Portugal.
Dos territórios de língua portuguesa, Moçambique foi o quarto a ter gravações regulares de artistas locais, sendo o primeiro Portugal (1900), seguido de Brasil (1902) e Goa (1910).
Para quem tem menos de 30 anos é importante fazer um parênteses. Vivíamos a época dos fonógrafos, aqueles enormes, caros e pesados aparelhos que davam a opção ao consumidor de ouvir música quando esta não era disponível ao vivo. Os menores aparelhos eram do tamanho de dois ou três CPUs de computadores e os maiores eram embutidos em móveis de madeira de lei trabalhada, coisa fina, do tamanho de dois ou três fogões atuais. Na compra desses trambolhos, o cliente recebia dois ou três discos de graça para ouvir no brinquedo novo.
Os discos eram os velhos e pesados 78 rotações, resistentes como a casca de um ovo. Armazenavam cerca de 3 minutos de música em cada face. O rádio era uma novidade ainda maior. Funcionava como hoje funciona a TV a cabo nos lares modernos, onde você paga para assistir canais de TV; não haviam comerciais, tampouco patrocinadores ainda.
É nesse cenário improvável que teremos as primeiras gravações de música moçambicana. A responsável pela empreitada é uma velha conhecida dos brasileiros: a gravadora Odeon. Alemã de nascimento, já naquela altura, devido à quebra da bolsa de 29, juntou-se às suas concorrentes diretas (Columbia, Pathé, Gramophone Company e outras empresas menores) e formou a EMI (sigla de Indústrias Elétricas e Musicais, em inglês), trabalhando porém, com relativa independência operacional. Não entenda-se com isso que não havia comércio musical antes. O que acontecia era que o mercado era exclusivamente direcionado a estrangeiros.
Havia música indiana,portuguesa e árabe disponível em disco. Faltava o repertório local. Como em praticamente todos os outros ramos da economia moçambicana da época, os portugueses entregaram de bandeja o comércio musical na mão dessa multinacional recém formada, a EMI. Não haviam gravadoras, nem engenheiros de som, nem técnicos,nem agentes portugueses. Os responsáveis pela difusão musical de Moçambique são os ingleses e alemães, que vinham numa crescente, expandindo e explorando novos mercados. Foi uma simples questão de avançar mais e mais pela costa oriental da África já que os mercados de Quênia e Tanzânia haviam se mostrado verdadeiras minas de ouro.
As primeiras gravações foram realizadas em Lourenço Marques (nome colonial de Maputo, a capital) e em Beira. Lá, uma variedade imensa de artistas locais fizeram gravações, em especial grupos de marimba, corais, solos de mbira (piano de polegar), guitarristas, entre outros. Infelizmente, ao mesmo tempo em que os povos africanos são ávidos consumidores de música, também descartam sua memória com imensa facilidade. Encontrar maiores dados, detalhes e fotos desses artistas pioneiros é uma missão praticamente impossível.
Paul Vernon, um dedicado estudioso desta nascedoura indústria musical reporta um registro de um funcionário de uma concorrente da época, relatando as atividades da rival Odeon em Moçambique. Registra esse funcionário que a companhia atendia a demandas cada vez mais crescentes dos revendedores em território moçambicano, demonstrando o imenso sucesso das gravações com artistas locais. Reporta ainda que o poder aquisitivo dos moçambicanos da época andava em alta, pois muitos trabalhavam nas minas de ouro de Joanesburgo, na vizinha África do Sul, e com seu salário consumiam a música recém introduzida em disco em grande quantidade.
Após a hegemonia inicial da Odeon, quem iria dominar o cenário musical do país nas décadas de 40 e 50 seriam os sul-africanos, em especial Eric Gallo, por meio de selos como Gallotone, Jive, Singer, e mais outras empresas menores, como a Tropik, Hit, Troubadour.
É importante ainda notar que essas primeiras gravações coincidiram com um período interessantíssimo da música de todo o continente africano, o chamado “hibridismo”, ou seja, a gradual assimilação pelos povos africanos de ritmos, noções e instrumentos musicais vindos da Europa e América. De instrumentos musicais, destaco a incorporação da bateria, do piano e do violão. O violão, por exemplo, tem papel importante na música africana no século XX. Este incorporou uma linguagem completamente nova nas mãos do negro africano das mais remotas localidades. Há ainda hoje literalmente centenas de estilos diferentes de toques de violão e guitarra em toda a África. Em Moçambique desde sempre os guitarristas da etnia changane são os mais conhecidos. Cito como exemplo Pedro Matabela, Aurélio Kowano, Filipe Sithole e Feliciano Gomes, todos ativos nas décadas de 40 e 50, deixando um sólido repertório gravado.
Aliás, é destes mesmos guitarristas changane o cultivo da “marrabenta”, tida por muitos como um ritmo moçambicano nacional, como o samba no Brasil. Tal confusão surgiu dentro da comunidade portuguesa residente na então Lourenço Marques. Na verdade, a marrabenta é o nome do toque particular destes mesmos guitarristas.
Fora os instrumentos, os africanos tomaram gradual consciência (via discos e rádio) da imensa herança africana criada nas Américas. Deu-se então a fusão de ritmos locais africanos com o jazz, o choro, o samba, a rumba, o mambo, o blues, a salsa, o merengue. Os moçambicanos foram também realizando esse processo de incorporação, conscientemente ou não, em sua música, tendo como influências principais os ritmos brasileiros e norte-americanos.
Para terminar, é importante salientar um detalhe que foge ao olhar do expectador estrangeiro. Não espere encontrar música moçambicana popular composta em português. A música moçambicana foi amplamente documentada, e praticamente todo idioma de importância primária ou secundária teve alguma gravação logo de início. Desde o suaíle no extremo norte ao ronga, no sul, todas as línguas estão devidamente representadas. Mas ainda estou por descobrir algum antigo artista que tenha gravado alguma canção em língua portuguesa, apesar dos nomes dos artistas serem muitas vezes bem lusitanos.
Para ouvir: CD “Forgotten Guitars from Mozambique” - selo Sharp Wood - traz gravações de guitarristas moçambicanos de fins da década de 50.
Emerson Santiago é brasileiro, advogado e professor de inglês. Lusófono declarado, ele é o mais novo colaborador do blog Descobri a Pólvora! e da Revista O Patifúndio.